Ensinar é sempre um ato político
Jul 4, 2025 - ⧖ 8 minSe você, assim como eu, compartilha conhecimento em vídeo, texto ou qualquer outro formato nas redes, já deve ter se perguntado se isso que a gente faz é só um “conteúdo” descartável, efemero, datado ou se tem algo mais por trás, algo maior que é produto da nossa criação de conteúdo.
Eu sempre fui fascinado por ensino, técnicas de ensino, as diferentes formas que as pessoas aprendem, mesmo eu me identificando como um Engenheiro de Software, e atualmente estar me dedicando a contribuir individualmente com desenvolvimento de produtos em uma empresa, a minha paixão sempre foi o ensino e estou sempre em busca de maneiras de entender e melhorar a forma como eu ensino.
Desde 2013, motivado por eventos politicos importantes, eu tenho usado meu tempo livre para ler bastante sobre filosofia, educação e política, li obras de nomes que me marcaram como o Paulo Freire, o Antonio Gramsci, Jose Pacheco, Richard Feynman, George Polya e finalmente por recomendação de uma pessoa no Mastodon eu conheci o autor Dermeval Saviani, e através do Saviani fui apresentado a tal da Pedagogia Histórico-Crítica, a PHC, que vou explicar brevemente.
Eu já sabia o que era, só não sabia o nome disso
E o curioso é que eu comecei a aplicar a lógica da PHC muito antes de saber que ela existia formalmente, eu dou aulas desde 1999, durante este tempo sempre fui questionador do ensino tradicional, eu fui um péssimo aluno na escola justamente por não gostar dos métodos de ensino.
Entre idas e vindas entre atuar como professor e programador, eu fui experimentando e adquirindo uma forma meio instintiva de ensinar, um modelo que venho sempre tentanto aperfeiçoar.
Só depois de muitos anos que topei com o nome do Dermeval Saviani, tudo começou a fazer sentido. Foi tipo quando você encontra um manual explicando aquilo que você já vinha fazendo meio no feeling. As peças se encaixaram.
Nesse post minha intenção é mostrar por que a PHC importa, inclusive pra quem ensina fora da escola: seja em vídeos, blog, palestra, canal do youtube, conversa no trampo ou até trocando ideia nos grupos e comunidades.
Educar é mais do que ensinar uma técnica
A PHC parte de uma ideia que, pra mim faz muito sentido: ensinar é sempre um ato político. E não é sobre política partidária, mas sim de reconhecer que todo ensino carrega uma intenção.
Não existe ensino neutro. Você pode estar formando alguém pra repetir, ou pra questionar. Pra obedecer, ou pra transformar.
No fundo, a proposta é ensinar pra além da técnica, da decoreba, do "passo a passo". Ensinar pra que a pessoa compreenda o mundo em que vive e possa agir sobre ele. É dar contexto. É ajudar a pessoa a se localizar na realidade e pensar: beleza, entendi isso — e agora, o que eu faço com isso?
No caso do ensino de programação e tecnologias, eu costumo dizer que eu não ensino Python, eu não ensino os estudantes a serem programadores, ao invés disso, eu ensino eles a serem resolvedores de problemas, eu ensino como usar Python para resolver esses problemas, desta forma, o Python nem é o mais importante, os conceitos ensinados através do Python passam a ser válidos em qualquer tecnologia.
Isso serve pra quem ensina na internet?
Muita gente que ensina na internet, ou mesmo em ambientes corporativos, acaba caindo numa lógica meio “treinamento fast-food”. Ensina a ferramenta, o comando, a receita. Mas não ajuda a pensar o porquê daquilo, nem o que fazer quando o caminho não é tão linear.
A PHC te ajuda a montar uma estrutura de ensino que começa no mundo real das pessoas, passa pelos conceitos, e volta pra vida — com mais clareza, autonomia e intenção.
Os cinco momentos da PHC
Quando descobri os cinco momentos da Pedagogia Histórico-Crítica, percebi que eu já fazia muita coisa ali, meio no instinto. Mas conhecer a estrutura me ajudou a organizar melhor as ideias, planejar com mais intenção. São eles:
- Prática social (ponto de partida) – Começar da realidade concreta. Quem é essa pessoa que vai aprender? Qual o contexto dela? Quais os problemas reais que ela enfrenta?
- Problematização – Mostrar que existem limites, contradições, dúvidas. É onde a curiosidade e o incômodo aparecem. É aqui que você fisga a atenção.
- Instrumentalização – Entra o conteúdo. O ferramental, os conceitos, a teoria. Mas sempre conectados com o que foi discutido antes.
- Catarse – Quando a coisa encaixa. Quando a pessoa entende o conteúdo de verdade e sente que “agora sim, entendi o porquê disso”.
- Prática social (ponto de chegada) – Voltar pro prático, para a solução do problema. Só que agora com mais capacidade de entender e agir de forma diferente.
Isso vale pra ensinar programação, matemática, história, como usar uma ferramenta no trabalho, como organizar finanças… qualquer coisa.
Um exemplo simples
Digamos que você tá ensinando alguém a automatizar tarefas com Python. O caminho tradicional seria começar mostrando o que é print()
, o que é for
, o que é uma função.
Mas na PHC, você começa diferente: “o que tá te tomando tempo no dia a dia? O que dá pra resolver com código?”.
A maioria dos cursos começa dizendo o que é uma variável, o que é um if, etc. Mas na PHC, o ponto de partida seria a realidade do aluno: por que essa pessoa quer aprender Python? Onde ela poderia aplicar isso na vida real?
Você parte da dor real da pessoa — processos manuais chatos, coisas que ela repete sem pensar, ou até mesmo introduzir um problema hipotético para quem está aprendendo, mesmo que o problema não seja real, situar a pessoa no problema é essencial, o ensino sempre começa a partir de um exercicio de imaginação, de hipótese.
Depois você provoca: “você já parou pra pensar quanto tempo perde com isso? será que precisa ser assim? será que tem um jeito mais eficiente? Você já parou para pensar em quais seriam as alternativas para resolver este problema?”
Aí sim entra o conteúdo técnico, só que agora faz sentido, porque responde a uma necessidade concreta. E no fim, você volta e diz: “ok, agora que você sabe isso, o que mais dá pra transformar?”
Não é uma fórmula engessada
Esses cinco momentos não são uma receita fechada. Não é sobre encaixar conteúdo em caixinhas. É mais uma forma de pensar o ensino com intenção, com propósito, com consciência do impacto que ele pode ter.
Isso torna a experiência de ensinar bem mais rica — pra quem ensina e pra quem aprende, um outro exemplo que gosto de compartilhar é sobre a maneira com que construi meus treinamentos Python Base, Python Web e Python DevOps.
No Python Base por exemplo, ao ensinar Orientação a Objetos, eu poderia ter seguido a receita tradicional e ir tópico a tópico mostrando o que é classe, o que é método, o que é encapsulamento etc.
Mas essas coisas Não fazem sentido para quem está aprendendo a programar, ao invés disso, eu começo criando um programa ruim, aliás, esta é uma caracteristica dos meus treinamentos, nos começamos sempre discutindo as soluções ruins, para que depois a solução otimizada faça sentido, partindo de um problema de verdade, por exemplo, durante o curso nós criamos uma solução de gestão de dados usando apenas estruturas de dados básicas como dicionários e listas, usamos arquivos JSON como banco de dados, vira uma loucura, uma verdadeira porcaria 🤣.
E então no decorrer deste exercicio vou pontuando os problemas, as dificuldades, ai eu provovo: "Imagina que só existisse essa forma de programar?", "Imagine se existisse um jeito melhor?".
Somente depois que o problema foi situado, que eu apresento o que é classe, o que é herança, o que é modelagem de dados, padrões de repositório, ORM etc, o que a Orientação a objetos pode resolver, e então assim que está tudo ensinado e fazendo sentido na prática, eu provoco novamente!
Começo a mostrar os problemas de POO, onde ela falha, e essa é a deixa para mostrar o paradigma funcional, que a partir de agora começa a fazer sentido real.
Este mesmo modelo de curso, de ordem de apresentação, eu sigo no Python Web, onde começamos escrevendo um framework do zero, e enfrentando os problemas que isso causa, assim quando entramos no ensino de frameworks famosos fica muito mais claro para os estudantes o motivo das coisas serem daquele jeito.
Definitivamente não é um método de ensino express, é um ensino que demora, eu costumo brincar que ensinar é minha arte e a arte não tem pressa.
No Treinamento Python para DevOps eu to aplicando uma otimização a este modelo, estou tornando o formato um pouco mais rápido, mas ainda mantendo a proposta da PHC.
Uma pedagogia que acolhe o mundo real
Como já mencionei, eu comecei a ensinar por volta de 1999, fui adquirindo uma experiência, um senso automático de como ensinar, eu já estava ensinando desta forma faz tempo mas entender a PHC me deu mais firmeza, me fez enxergar que o que eu fazia não era bagunçado ou “menos sério” por não seguir os modelos tradicionais de ensino.
Muito pelo contrário: tem uma pedagogia que legitima, dá base, e diz “é isso mesmo, educar é partir da realidade concreta e voltar pra ela — só que com mais ferramentas”.
Conclusão
Se você ensina qualquer coisa — seja num canal, num curso, no trabalho, numa conversa entre colegas — vale a pena conhecer e aplicar a lógica da Pedagogia Histórico-Crítica.
Ela te ajuda a fugir do ensino automático, da técnica pela técnica. E te aproxima de algo que, na minha visão, é muito mais transformador: ensinar pra mudar a forma como as pessoas enxergam o mundo e atuam nele.
Se quiser trocar ideia sobre isso, manda mensagem. Sempre bom conversar com quem também acredita que ensinar é mais do que transferir conhecimento — é criar sentido e motivar as pessoas.